O que a Arte Popular nos diz hoje, o que é capaz de despertar? Vivenciamos uma espécie de “revival” da Arte Popular, não do fazer artístico em si, que continua a proliferar imagens fantásticas nos seus tradicionais núcleos de produção. Falo de um reviver, ou quem sabe, um novo despertar do olhar para essa arte tão ligada às nossas raízes de povo brasileiro. Nos últimos anos a cultura popular, seus objetos e imagens de muitos regionalismos vêm sendo resgatados e cada vez mais associados ao desejo da sociedade contemporânea. Na verdade esse é mais um ciclo que se atualiza, visto que no passado tivemos outros tempos de valorização do regional e do popular.
Aconteceu na década de 60 e 70 com o movimento hippie, a tropicália e seus naturalismos, se manifestando na moda e no design moderno, priorizando materiais brasileiros, madeira e pigmentos naturais, tecidos artesanais e populares. Os meios de produção também buscavam a manufatura artesanal, estreitando cada vez mais os laços entre moderno e vernacular. Nessa mesma época a arquiteta e designer Ítalo-brasileira Lina Bo Bardi valorizava a cultura de raiz introduzindo arte popular brasileira no acervo do MASP com a mesma relevância dada às coleções de arte europeia do museu. Vimos na década de 80 e 90, no auge da apropriação da cultura norte-americana, Janete Costa, arquiteta pernambucana pioneira do design de interiores, introduzir na casa brasileira a arte popular, lado a lado ao design moderno, sem hierarquias, fortalecendo comunidades do Nordeste e valorizando o artesão em projetos e exposições.
Em pleno século XXI algo aconteceu, voltamos a povoar nosso cotidiano com artefatos feitos a mão, cada vez mais originais – no sentido de nossas origens. Ao mesmo tempo nunca fomos tão cyber e digitalmente orientados. Vivemos, portanto, uma nova era onde o futuro nunca foi tão próximo do passado, ou pelo menos em busca dele. O fato é que o desejo contemporâneo mudou e vem sendo orientado pelas tendências da cultura slow, vintage, pelas ideias de sustentabilidade e reutilização de materiais. Nessa era paradoxal estamos vendo o surgimento de novos modos de vida, menos ansiosos pelo acúmulo de bens da cultura de massa e mais sensíveis às produções que agregam valores e sentido à vida.
Nessa arte de seiva popular transformada pela ação direta da mão humana nos matérias da natureza, couro, madeira, barro, palha, entre outros, se percebe algo estranhamente distante e intimo de nós. O despertar da arte popular parece passar por esse sentimento de estar diante de algo que conta nossas histórias guardadas no tempo. A arte popular tem esse poder memorial de tocar sutil e profundamente em camadas que nos ligam ao nosso ser histórico, aflorando nosso ser mais afetivo. Aquele que se entusiasma com as coisas mais simples e nos fazem ver o mundo de forma diferente.
Também podemos acessar a arte popular por seus processos socioculturais e históricos, considerados fontes puras de conhecimento, ou ‘ciência de origem’, tão cara às ciências sociais, à história e à museologia, para compreender melhor o que permanece ainda inexplicado. Nessa trama entre memorial e histórico, familiar e distante, é curioso como essa arte ainda está reservada ao território específico do “popular”. Herdamos da História da Arte ocidental, tradicionalmente europeia a separação em dois territórios distintos: arte culta e arte popular, cada um com valores estéticos e simbólicos específicos. Apesar de inescapável da tradição da arte culta, essas divisões vêm sendo questionadas nas últimas décadas por estudos multiculturais e revisadas em grandes acervos de museus e exposições que borram e expandem as fronteiras entre os dois circuitos. Em 2018 vimos no MASP e Instituto Tomie Ohtake a exposição Histórias Afro-Atlânticas, em 2019 a exposição À Nordeste no SESC 24 de maio (SP) e como marco histórico, a exposição, A Mão do Povo Brasileiro, curada por Lina Bo Bardi no MASP em 1969.
Entre os sentidos fundamentais da arte popular, é importante ressaltar memória, raiz e tradição. Memória sendo um valor essencial que traz em si saberes e significados de toda uma cadeia ancestral, transmitidos por gerações, onde pessoas assimilam e repassam ensinamentos, enraizando vínculos de afetos e pertencimento. É comum ouvir do artesão e do artista popular como seu trabalho faz sentido e produz suas próprias realidades. Essa memória carregada de ancestralidade se atualiza a cada novo ser, cada nova produção. Um calango pode ser repetido centenas de vezes, mas será sempre um novo calango, feito de um novo tronco com relevos e ângulos diferentes. Memória também incorpora outros sentidos: memória social, ligada ao povo de um lugar; memória cultural, também coletiva e capaz de nos identificar como um só povo; memória afetiva, aquela que narra nossas histórias nos lembrando sobre algo íntimo e particular.
Raiz, um valor que se confunde com “origem”. A arte popular fala de um passado familiar ou de um lugar desconhecido que aflora quando um objeto nos arrebata, nem sempre por uma estética agradável, às vezes até estranha. O estranhamento faz parte dessa arte que move nosso olhar a penetrar em camadas profundas, convidando ao mergulho onde pode surgir o arrebatamento. Numa visita à fazenda Não me Deixes, em Quixadá, terra da nossa estimada escritora Raquel de Queiroz, experimentei esse arrebatamento. Todos os cômodos da casa falavam por afetos e raízes, como matrizes das minhas memórias de infância no sertão. Nenhum espaço ou objeto foi mais forte do que a visão dos enormes potes de barro seculares que até hoje resistem como Raquel os deixou na cozinha. O pote de barro da casa de Raquel imediatamente me levou para uma experiência de infância, quando me vi pequenina diante do gigante, tentando tirar água do pote, um objeto-raiz cuja imagem reavivou sensações e lembranças.
Tradição – tem a força e o desejo de manter vivas as marcas, os saberes e a estética de uma cultura. É a tradição que produz continuidade, perpetua gestos, imagens e significados. A Arte Popular alimenta-se do cotidiano e do imaginário do povo, transformados em repertórios infinitos de imagens, narrativas, festejos e relíquias da fé. É a partir desse imaginário que artistas e artesãos produzem suas leituras de mundo, modeladas no barro, esculpidas em madeira, cantadas nos folhetos de cordel, xilogravuras populares, etc. Assim, tipologias e superfícies são transformadas pelo poder atávico da mão do povo brasileiro. Tradição também é sinônimo de insistência, pois se trata de uma eterna luta entre manutenção e resgate, onde os mais velhos ensinam os mais jovens o valor e o prazer de perpetuar suas origens.
Aonde há tradição, também existe renovação. Importantes núcleos de arte popular são verdadeiros berçários do novo, carregados de essências e transformações. Um deles é o Cariri Cearense, terra prolífera onde a arte, a fé e a cultura dão as mãos e encenam o espetáculo da tradição e da renovação, atualizando a grande máxima do Padre Cícero: “- em cada sala um altar, em cada quintal uma oficina”. Força presente em núcleos de produção como a Associação Mestre Noza em Juazeiro do Norte, um coletivo fundado e gerido por artesãos que há décadas se fortalece e prolifera arte popular de grande expressão. Ali peças de madeira e barro ganham vida nas mãos de homens e mulheres que a partir do contato com a fervilhante cultura local, modelam imagens expressivas de santos, ex-votos, personagens do povo, velhas de caras marcadas e vestidas de chitas coloridas, criaturas fantásticas saídas dos cordéis, calangos e cachorros do mato decorados com cores e grafismos.
No Cariri cearense o arcaico e o atual, o religioso e o profano, o real e a fantasia estão nas romarias, nos festejos populares e na arte do povo. Tudo se funde nesse terreiro cultural de alianças fecundas, fonte inesgotável de mestres e aprendizes. Na xilogravura e escultura muitos são herdeiros de Mestre Noza que deu início ao núcleo da produção em madeira de Juazeiro, oficio que formou mestres como Manuel Graciano, Francisco Graciano, Nino, Diomar das velhas e seu herdeiros que hoje atuam na produção. Na tipologia do Barro, se destaca uma grande mestra, Maria de Lourdes Cândido de Juazeiro do Norte, figureira que deu origem aos famosos “temas”. Um formato inusitado, entre pintura e escultura, onde ela modela e pinta no barro cenas da vida e da cultura popular. Hoje a mestra e seu clã formado pelas filhas dão continuidade aos singelos temas, presentes em acervos de relevantes museus da cultura brasileira.
A arte em sua multiplicidade como conhecimento e fonte inesgotável da construção humana faz parte da minha trajetória de professora e pesquisadora. Há alguns anos, eu, minha filha e meu marido, pegamos a estrada e percorremos mais de 20 mil km conhecendo e registrando centros de arte popular do Nordeste. Na estrada o peregrino de Jean Ives Leloup nos atravessava, tornando sagrados os lugares e os encontros com mestres e artesãos, suas histórias, ambientes e meandros da produção. Essa experiência gerou um grande arquivo de imagens, conhecimento e desejo de transformar tudo em um projeto que mostrasse o valor da arte e do artista popular. Daí nasceu a plataforma www.popularartebrasil.com.br, um canal de venda online da produção de arte popular do Nordeste, onde apresentamos um recorte curatorial de peças pinçadas pelo sentido estético, histórico e cultural que carregam, e claro procurando reconhecer nesse recorte uma produção marcada pela diferença na expressão de cada artista que no site são biografados. Além de um blog com histórias e noticias da cultura popular, vídeos, textos autorais e de colaboradores.
Acreditamos que essas peças contam histórias, são frutos de um saber-fazer que tem muito a nos ensinar mostrando que a força dessa criação está na própria postura diante da vida, das privações, mas também da abundância de um olhar que enxerga poesia e beleza no simples da vida. A arte Popular é esse lugar de floração, aonde brotam essências e renovações.