Inauguramos esse blog sobre histórias e percursos pela cultura popular desse vasto e ainda tão desconhecido Brasil. Um espaço editorial que pretende relatar por meio de textos, imagens e pesquisas, experiências sobre nossa cultura de raiz popular. Nosso enfoque são as narrativas sobre a arte do povo brasileiro, seu imaginário criador, personagens, lugares, produções e formas de vida, apresentadas para capturar olhares e aguçar diálogos que venham a compor com a gente uma rede de histórias e relatos.
Desejamos aqui nos aproximar da perspectiva de “contação de histórias” e do relato do viajante que admirado com a estrada e suas descobertas, contamina olhares ao simples gesto de narrar o que viu, sentiu e viveu por onde passou. E assim, pretendemos tocar leitores em algum lugar particular da memória, aquele quase na superfície esperando aflorar pra reviver lembranças. Memórias são forças pessoais, mas também coletivas e quando alcançam essa dimensão que pertence ao campo da coletividade podem potencializar significados, nos referenciando como um povo que partilha afinidades e o sentimento de ser brasileiro.
Nesses dois últimos anos, pegamos a estrada e viajamos mais de 20 mil Km por localidades e sertões do Nordeste, onde encontramos recantos surpreendentes de paisagens, saberes e fazeres. No contato com esses lugares e seus personagens inusitados, percebemos que eles contam histórias valiosas e apesar de pontilhados no mapa do Brasil são invisíveis.
Um Brasil profundo, vasto e desconhecido, carrega em si valores que afloram nessas comunidades produtoras de arte popular, manufaturas e tipologias diversas produzidas a partir de sentidos essenciais, como raiz, memória e tradição. Registramos essas viagens e vamos mostrar como a arte do povo é uma produção estética que permanece pela via da insistência de produzir manualmente objetos a partir de experiências de vida, retirando das matérias da natureza seu sustento, ao mesmo tempo em que modelam repertórios e perpetuam tradições.
Viajar pelas entranhas do Brasil faz a gente perceber o quanto é abundante, mas também desproporcional. A arte popular pode ser um aspecto de forças e tensões capazes de revelar um retrato panorâmico do nosso território nacional com suas potências e discrepâncias. Um retrato que bem reflete a Abaporu (1928), pintura de Tarsila do Amaral. Em sua visão modernista a artista nos mostra um ser enormemente estranho, de membros agigantados e cabeça atrofiada, ao lado de um cacto tão majestoso quanto a figura. Seria esse um retrato do Brasil e de seu povo? É possível, já que a arte tem esse poder simbólico de nos fazer imaginar e refletir criticamente sobre visões e significados da vida e da cultura.
Norteamos nossas pesquisas e ampliamos o interesse pela cultura e arte popular a partir dos registros de outros espíritos comprometidos em pensar o Brasil. Ao seu modo eles produziram uma cartografia estética e poética dessa nossa extraordinária e confusa brasilidade. Entre eles, Mário de Andrade, escritor e intelectual brasileiro em seu extenso repertório de interesses mergulhou em uma viagem de descobertas pelo Brasil, iniciando pelo Nordeste. Daí surgiu o livro, O turista Aprendiz, escrito em forma de diário de viagem, onde Mário narra experiências do litoral ao sertão, dos mitos das florestas, festas populares, rituais, danças, etc. Um retrato de uma brasilidade mestiça, indígena, cabocla e caipira, ou desse Brasil “profundo” cujas entranhas são capazes de arrebatar nossas epidermes metropolitanas. Cabe ainda lembrar Lina Bo Bardi, arquiteta e designer italiana de enorme coração brasileiro, que chega ao Brasil no final da década de 1940 com o marido Pietro Maria Bardi. Ambos experientes agentes culturais na Itália, convocados pela política progressista da pujança modernista que impulsionava o Brasil, estimulada por inovações na indústria, engenharia e nas artes. Na verdade, aqui se farejava uma modernidade exalada pela Europa e Estados Unidos, mas ainda sem riscar de fato um projeto consistente de Brasil moderno, capaz de transformar de forma integral o corpo e a face do Brasil.
Lina Bo Bardi com seu faro e experiência apurada na fase de reconstrução da Itália no pós-guerra, viajou e conheceu boa parte desse Brasil profundo, penetrando em comunidades dos sertões e da Amazônia, conhecendo de perto a produção estética, os problemas sociais e o patrimônio artístico e cultural brasileiro. A partir desse mapeamento, Lina alertava as autoridades políticas e industriais que antes de implementar um projeto moderno, inspirado na experiência europeia, e sendo “o Brasil um país de seiva popular”, era preciso elaborar uma profunda revisão cultural e histórica. Na verdade, Lina queria dizer que o Brasil não conhece o Brasil, e para conhecer é preciso penetrá-lo, experimentar suas seivas, tocar em suas formas, dialogando e documentando. Assim, ela propõe um raio x panorâmico-cultural, estético e vivencial do Brasil.
O artesanato, a arte popular, seus artefatos e produções da nossa cultura vernácula vivenciadas por Lina se tornaram acervo e formas essenciais para pesquisas e desenvolvimento de grandes produções modernas elaborados por ela na arquitetura, no design e na museografia. Tudo isso culminou em projetos como o Estúdio Palma de produção de mobiliário, em complexos arquitetônicos como o Sesc Pompéia, restauros de patrimônio cultural e na grande exposição que Lina organizou no Museu de Arte de São Paulo – MASP em 1969, intitulada “A Mão do Povo Brasileiro”.
Uma apoteose de arte popular e manufaturas artesanais de todos os cantos do Brasil penetraram o primeiro e maior museu moderno do país. Permanece até hoje, no acervo do MASP com a mesma ênfase dada à arte clássica e europeia, sem hierarquias, ocupando democraticamente o museu como idealizaram Lina e Pietro Maria Bardi. A arte popular na trajetória e nos projetos de Lina Bo Bardi expande sentidos, pois além de acervo e evidências culturais, se torna um meio para se pensar modos de vida, reflexões e transformações sociais.
Norteados por essas experiências culturais, escolhemos a região Nordeste, tendo em vista a ênfase e o maior interesse que há décadas são dirigidos à arte popular dos estados do Sudeste, principalmente de Minas Gerais, seja pelas pesquisas etnográficas, museológicas ou de mercado. A princípio esse recorte do Nordeste nos levou a escolha por núcleos de produção de arte popular no estado do Ceará, onde nasci e atuo de como pesquisadora e curadora em artes. Nesses percursos tenho como parceiro, Luiz Duarte Filho que além de companheiro de vida, partilhamos sonhos e a paixão pela arte do povo Brasileiro.
Dessa parceria de arte e vida nasceu a plataforma www.popularartebrasil.com.br, projeto que envolve as viagens de conhecimento de mestres e artesãos do Nordeste do Brasil, uma produção de narrativas e pesquisas que alimentam esse blog e um site e-commerce que apresenta com curadoria uma expressiva seleção de manufaturas e arte popular à venda para todo o Brasil. Acreditamos que essas peças contam histórias, nossa missão é fazer com que essas histórias sejam conhecidas, mostrando seus valores e sentidos peculiares dessa arte de raiz popular que tanto nos encanta e identifica como um povo.
Nesse projeto que também é busca de vida, a estrada é lugar de travessia e construção, nela somos o peregrino de Ives Leloup que “forma sagrado os lugares que visita”. São territórios geográficos, culturais e afetivos que atravessamos conhecendo pessoas e histórias em seus núcleos de produção. O próprio percurso da cultura popular norteia e apura o olhar que deseja ir além, tocar outros lugares, encontrar novas histórias, afinal, essa é uma estrada que nunca acaba…