Por Luciana Eloy (professora e pesquisadora em arte)
Peter Brueguel (O Velho), O Combate Entre o Carnaval e a Quaresma, 1559.Óleo sobre carvalho. Museu de História da Arte em Viena
A maior festa do povo brasileiro é também uma festa universal, no sentido amplo de sua história e gênese abarca tradições tão antigas quanto multiculturais. O que chamamos de carnaval pode ter origens na antiguidade da Grécia, Babilônia, nos ritos pagãos das bacantes em honra a Baco na Roma antiga, ou até mesmo nos rituais festivos dos antigos judeus que bebiam, comiam e dançavam em torno de suas crenças e ritos.
Histórias tão longínquas entre si, mas que em comum têm a fantasia de trocar de identidade por alguns dias, fantasiar-se, beber, dançar, usar máscaras e levar a brincadeira para as ruas das cidades – espaço comum festivo com permissão aos brincantes de alterar a ordem social para extravasar.
Recorte da obra, O Combate Entre o Carnaval e a Quaresma, 1559
Na imagem de capa, Peter Brueguel, “O Velho”, nos empresta sua visão na obra, O Combate entre o Carnaval e a Quarema (1559). Na cena medieval uma multidão constrói a trama festiva entre o profano e o sagrado e a cidade é o palco desse enredo. Ao centro da imagem, escapando para o quadrante esquerdo é possível ver o carnaval em seus atos e ritmos, encenando uma espécie de caos mundano, onde personagens do povo ocupam o centro da cidade em ritmo de euforia.
Mascarados, menestréis, dançantes, crianças, velhos, e personagens embriagados partilham de uma festa que parece não ter regras, e não tem mesmo! Note que ao centro, outras atividades acontecem, comerciantes e ambulantes vendem seus produtos – peixes, pães, sopas e o enorme barril de vinho com uma figura robusta se refastelando sobre ele. A comida é assada ali mesmo em meio à multidão, em fogueiras ou fogareiros improvisados. Folia, comércio, meios de produção e foliões coexistem.
No oposto a essa farra mundana vemos a esfera religiosa do tema de Brueguel que evoca à quaresma, período religioso cristão que tem início na Quarta-Feira de Cinzas e se estende até a Páscoa. Nas cenas do lado esquerdo e superior da imagem os personagens em vestes escuras e sombrias, são os burgueses e religiosos, guardiões da paz, da ordem e da riqueza, simbolizando a “quaresma”. A pintura de Brueguel acontece nessa fronteira entre carnaval e quaresma, onde tudo vira caos numa grande folia barroca. A palavra “folia” de origem latina que significa “loucura”, adere bem a essa tradição carnavalesca que desde os tempos sombrios e duros medievais ser louco por alguns dias era permitido e celebrado pelo povo.
Jean Baptiste Debret. Entrudo. Aquarela sobre papel, 1823
No Brasil a origem do Carnaval chega na colonização com o Entrudo, festejo europeu, trazido pelos portugueses no século XVI, comemorado antes da quaresma. O Entrudo era uma festividade do povo que em euforia e desordem brincavam ao som de menestréis, as pessoas atiravam ovos e farinha umas nas outras. Qualquer semelhança com os “mela-mela” do carnaval atual não é mera coincidência. É a história e seus rituais ganhando novas leituras.
Jean Baptiste Debret. Marimba, passeio de domingo à tarde, 1826
Nessa sequência de aquarelas do pintor francês Jean-Baptiste Debret, realizadas no Rio de Janeiro do século XIX é possível ver uma crônica pitoresca dessa gênese do carnaval como festa popular. O Entrudo europeu começa a se mesclar com outros ritmos, povos e cores ganhando espaço e vida nas ruas da colônia. As manifestações festivas dos escravos, seus ritmos e danças aconteciam secretamente, ou reservadas aos seus espaços limítrofes, terreiros ou senzala. No período do Entrudo a população negra que trabalhava na cidade, possivelmente os chamados “negros de ganho”,saiam em grupos, entoando batuques, ritmos e cantos africanos e nessa experiência carnavalesca era possível ver uma certa convivência entre ritmos portugueses e africanos. O que nos remete às atuais bandinhas, blocos e marchinhas de carnaval, ritmadas ao som de tambores e tamborins.
Jean Baptiste Debret. Coleta de esmolas para a Igreja do Rosário dos Pretos
Nessa outra aquarela de Debret, a cena se passa numa igreja onde os personagens são um grupo de negros com vestes de realeza, o casal coroado de rei e rainha, o garoto com turbante encimado com penas segura o manto real e um homem está de pé na função de coletar doações para a Igreja do Rosário dos Pretos. As irmandades negras aculturadas na fé católica se põem a realizar os mesmos atos e rituais brancos, sendo comum a incorporação de modos de ser da realeza durante as festas católicas. Principalmente no Rio de Janeiro colonial, cidade sede da família real portuguesa no Brasil.
A cena de Debret traz à tona a compreensão de como as práticas religiosas incorporaram traços da realeza. Foi através dessas práticas religiosas que súditos brancos e escravos construíram o sincretismo cultural brasileiro. Referências culturais ao longo dos tempos foram incorporando-se em festejos populares – nos reisados de congo, Maracatus, assim como na coroação do Rei Momo e rainha carnavalescos. Cada um à sua maneira desfilam em cortejos personagens brincantes que encenam reis, rainhas e calungas, ao som de batuques e tambores, cantando toadas e outros cânticos afrodescendentes, enquanto dançam e exibem suas fantasias coloridas e alegórias, armas, cetros e coroas reluzentes.
Imagem: @joaobach Fonte:https://medium.com/otros-carnavales-2019/negrume-c93f000770b2
No Brasil, comenta Lília Schwarcz, “religião e realeza estão ligadas de forma muito peculiar”, “os mantos imperiais, convivem com os mantos divinos e o imaginário da realeza acaba permeando fortemente o catolicismo brasileiro, da mesma maneira que uma série de manifestações populares como o Carnaval – com seus impérios, reis rainhas e enredos –, se nutre das cenas da monarquia”.
Imagem: joaobach Fonte:https://medium.com/otros-carnavales-2019/negrume-c93f000770b2
Nesses festejos sincréticos é comum a prática do “negrume”, ou “rosto tisnado”, um modo comum entre os festejos de maracatus, reisados e congadas em que os brincantes pintam o rosto com uma máscara negra produzida com as cinzas da cana queimada. João Batista, fotógrafo cearense que acompanha os desfiles de carnaval de blocos de maracatu fazendo dessa prática uma poética da sua imagem, explica: “o negrume para o maracatu cearense é uma forma de resistência que remonta as várias proibições que aconteceram a partir de XIX em que se cercearam as manifestações dos negros, dentre elas os cortejos em homenagens aos reis de congo. Pintar o rosto representou uma forma de dificultar e confundir a sua identificação”. (Fonte:https://medium.com/otros-carnavales-2019/negrume-c93f000770b2)
Imagem: www.popularartebrasil.com.br
Apesar de semelhante na forma, o negrume nada tem a ver com o conceito de blackface que se refere a uma prática teatral introduzida no show business norte-americano, quando atores brancos para representar personagem afro-americanos pintavam seus rostos com carvão de cortiça. Uma prática ofensiva que ficou marcado por evocar a cultura racista e hoje muito condenado. É preciso conhecer as duas práticas para saber diferenciá-las, se valem do mesmo recurso cênico, mas são culturalmente distintas e com significados opostos, pois no Brasil tisnar o rosto de tinta negra nas nossas manifestações culturais, além de perpetuar traços ancestrais é uma marca do orgulho negro
Matriz de Barbalha, Ce. Reisado de Congo
Imagem: www.popularartebrasil.com.br
A festa profana europeia, se misturou aos ritmos da África, vestiu-se de realeza e brincou nas ruas e avenidas incorporando outros ritmos, outras máscaras e fantasias nos vários cantos do Brasil. Nas festas do Boi Bumbá no Pará; nos Reisados do Cariri, nos Caboclos Ponta de Lança do Maracatu Rural de Pernambuco, nos palhaços Bate-bolas do subúrbio do Rio de Janeiro ou na Marquês de Sapucaí onde acontece a maior festa carnavalesca brasileira. Em cada uma dessas manifestações vemos a dança do sincretismo acontecer na sua diversidade cultural, mostrando que as misturas brasileiras vibram em alegorias e festejos populares em todas as partes do Brasil.
Enfim, o Carnaval europeu se tornou negro, indígena, barroco, sagrado e profano e se atualiza a cada ano. É a festa mais simbólica, que nesses quatros dias, representa o que é ser “povo”, sem hierarquias, sem fronteiras. Cada canto do Brasil tem uma narrativa e cada uma nos ensina a entender que nossa brasilidade está na nossa diversidade.
Pelo menos até a Quarta-Feira de Cinzas… É o Carnaval que faz o Brasil todo ser “popular”.