Por Luciana Eloy curadora e pesquisadora em arte.
A arte do povo brasileiro é popular e universal!
Sala de Reisado da ONG Beatos, Crato-Ce.
É o nosso mais vivo tesouro da cultura, onde se misturam raízes, saberes, fazeres e manifestações que modelam nossa memória cultural brasileira.
Artesã Taís de Juazeiro do Norte
Lápis Mateus e Catirina da Artesã Taís
Na ponta do lápis a artesã Taís de Juazeiro do Norte-Ce, esculpe com delicadeza e precisão miniaturas de dois ricos personagens da cultura popular, a dupla Mateus e Catirina, brincantes do Reisado de Congo predominante no Cariri Cearense. Taís não esculpe apenas duas figuras, ela põe seu repertório cultural em circulação, fixando o imaginário do Reisado com os pequeninos Mateus e Catirina. Além de nos mostrar como é feita a partilha entre os ofícios das artes manuais e o rico repertório da região. Na verdade, nada é interpretado, tudo é vivido! Colhido nas experiencias de um povo que desde criança vive e aprende a contar as histórias da cultura de tradição, sendo o Reisado de Congo um repertório vivo de histórias, cores e formas para a forja de imagens nos ofícios da arte popular.
Frente de Reisado, Associação Mestre Noza, Juazeiro do Norte.
A arte popular é um universo plural de manifestações culturais tecidas no tempo. Passado e presente tramam a teia de memórias, imaginário, mitos, histórias e modos de vida. O Cariri é um grande caldeirão de culturas e etnias do sertão nordestino, onde se misturam nossas raízes originárias dos primeiros habitantes da região, os indígenas Tapuia-Cariris, mescladas à outras presenças como a do colonizador europeu, quilombolas africanos dos fluxos migratórios de judeus-mediterrâneos e árabes andaluzes.
É impressionante como traços dessas vertentes culturais do passado integram o grande sincretismo das artes produzidas e encenadas no Cariri cearense. Desde as imagens esculpidas na madeira, os ex-votos, a xilogravura, as rimas do cordel, ornamentos, danças, folguedos, festejos, bandas cabaçais, romarias e procissões. Erudito e popular; sagrado e profano; devoção e fé, são forças atemporais que movem o povo e marcam a história dessa região.
Mestre Nilo, Reisado de Barbalha,Ceará.
Uma tradição que reúne essa grande herança cultural é o Reisado de Congo, predominante no Cariri do Ceará. Portanto, o que é, de onde vem, e como se manifesta o Reisado de Congo?
Acontece durante os ciclos natalinos culminando no dia 06 de janeiro quando os grupos de reisado saem de seus terreiros em cortejo pelas ruas da cidade, exibindo fantasias reluzentes e coloridas, dançando e entoando cantos, festejando com alegria e exuberância os Santo Reis, figuras bíblicas que trouxeram de longe presentes para o Deus-menino.
Guerreiro do reisado dos irmãos, Juazeiro do Norte-Ce.
A riqueza do Reisado de Congo está na grande fusão cultural, erudita e popular, que ostenta em seu rico repertório de origem ibérica e afro-brasileira. A saída dos “terreiros das ruas de Quilombo” são termos que evocam a memória dessas origens africanas do reisado. São territórios ancestrais impregnados de modos de vida e histórias das sociedades africanas escravizadas no Brasil. Entre eles haviam reis e rainhas capturados pelas redes da escravidão nas costas africanas, se tornaram propriedade do colonizador. Ao longo do tempo, desde o período colonial, a memória dessa realeza negra passou a ser festejada como orgulho e reivindicação social, por grupos e irmandades de “homens pretos” que saiam pelas ruas cantando, entoando batuques e dançando em honra a seus ancestrais.
Traços das origens ibérica (portuguesa) e de outras culturas mediterrâneas (judaica e árabe) aparecem em personagens distintos, como os guerreiros que trazem a memória dos soldados romanos, algozes de Jesus com suas espadas reluzentes e chapéus decorados de fitas, pedrarias e espelhos com a exuberância ornamental dos mosaicos bizantinos. Entra na cena do reisado personagens fantásticos forjados no imaginário do sertão profundo, que brotam das histórias repassadas por gerações como o Jaraguá, a burrinha, a alma, o cão e o Boi – animal sagrado do nordestino. Mateus e Catirina são os grandes foliões do reisado, personagens cômicos que fazem a graça e alegria no cortejo.
Mateus do Reisado dos Irmãos, Discípulos de Mestre Pedro, Juazeiro do Norte
O Mateus é uma liderança no grupo, goza de total liberdade, cabendo a ele a ordem e a desordem da brincadeira. Suas vestes em vermelho e azul lembram o uniforme de polícia, ou estilização das vestes dos cangaceiros, com bornais e cartucheiras atravessadas no peito. Na cabeça o Mateus usa um chapéu pontudo – a Cafuringa, enfeitada de espelhos e fitas, acessório muito aproximado à estética da representação dos Oguns nas estatuetas africanas, mais um rastro dessa matriz ancestral. Para alguns pesquisadores da tradição popular, o Mateus é o verdadeiro Rei do Congo. Numa mão leva um pandeiro e na outra uma “macaca” (espécie de chicote) usada para mexer com as crianças e espantar os bichos do reisado.
Dois Mateus meninos do Reisado dos Irmãos, Juazeiro do Norte
O Mateus é esse personagem que mistura comediante e autoridade, sua ação é parodiar, galhofar, cantar e dar gaitadas, mas também meter medo com suas caretas e marmotas. Ele pode ser apresentar com pequenos Mateus crianças, os filhos do Mateus, uma forma de cultivar a cultura do reisado nos pequenos.
Mateus e Catirina, do Reisado de Mestre Dedé do Crato-Ce. (ao comando da Mestra Mazé)
Catirina é a noiva do Mateus, em dupla eles fazem paródias e estripulias. Ela de vestido de chita colorida, também leva numa mão pandeiro e noutra um chicote pra “bulir” com a garotada. Na cabeça usa uma peruca assanhada ou duas tranças longas, embute na barriga um enchimento pra simular a gravidez, ou barriga grande mesmo. Na brincadeira ela grita, rodopia e levanta a saia apontando a barriga de grávida pra acusar o pai da criança no meio do público. Ela é cômica, estridente e espalhafatosa, pode ser interpretada por um homem, como era tradicionalmente, mas hoje alguns grupos de reisados já têm mulheres brincando de Catirina.
Mateus e Catirina do artista popular Arnaldo, Juazeiro do Norte
Um traço identitário do Mateus e Catirina é o rosto pintado de preto como máscara. Ainda que o brincante seja preto, seu rosto ganha a camada feita com tisna de panela e vaselina que os distinguem dos demais, afirmando suas raízes negras. Esse recurso cênico é também conhecido como “negrume”. É Importante não confundir negrume com “Black Face”. O negrume é um recurso estético usado no teatro popular brasileiro como traço identitário de afirmação e orgulho da herança africana. Já o Black Face surge no cinema-mudo e no teatro de Nova York, usado por atores brancos com rostos maquiados ridicularizando sotaques e trejeitos com teor humorístico, afirmando estereótipos negativos associados às pessoas negras.
Mestre Antônio, Reisado dos Irmãos- Discípulos de Mestre Pedro, Juazeiro do Norte/Mestre Aldenir, Reisado do Crato.
Não há como falar de reisado sem tocar na importância do trabalho dos mestres que atuam na permanência da tradição do reisado como tesouro vivo e patrimônio da cultura popular, entre eles, destacamos o Mestre Aldenir do Reisado do Crato-Ce, Mestre Antônio do Reisado dos Irmãos e Mestre Dodô do Reisado São Francisco, ambos de Juazeiro do Norte – CE. Aos mestres cabe o repasse dos saberes, composição dos cantos, organização e ensaios dos grupos, manutenção das casas e terreiros. Eles pertencem a uma linhagem antiga que preserva o reisado como símbolo de uma tradição ancestral e carregam a força da “peleja” unida à paixão de manter viva a tradição do reisado em suas regiões.
Banco Reisado da Taís e Boi de Reisado da Patrícia.
O reisado é patrimônio imaterial da cultura popular, constrói nossa identidade e memória cultural, cultivado por pessoas simples, mestres e aprendizes de extrema sensibilidade e senso de responsabilidade para as tradições. São os artistas populares – brincantes, artesãs e artesãos, mestres da cultura, os guardiões dessa memória coletiva, onde habitam nossos mitos, imagens e histórias. São eles – os artistas do povo, que modelam uma nação brasileira, mestiça, profunda, afetiva e diversa, lutando e resistindo nos terreiros rituais e no coração da cultura popular.